quinta-feira, 23 de abril de 2009

Andrea Busfield - a inglesa que descobriu Cabul



"Até o ano passado, eu morava em Cabul. Para o mundo exterior a capital do Afeganistão era uma cidade despedaçada, já que o Talebã havia voltado à cena com uma série de ataques suicidas. Todo mundo acreditava que a comunidade de expatriados estivesse vivendo com medo. Mas a liberdade era muito diferente. Cabul era divertida.


Ao se libertar do regime fundamentalista após o 11 de setembro, a capital pulsava vida e possibilidades. Homens jovens não mais escondiam rostos bonitos atrás de barbas do comprimento de um palmo, e mulheres podiam andar livremente pela cidade, estudar e trabalhar pela primeira vez em anos. Shopping centers surgiam por todos os lados, restaurantes ficavam mais sofisticados, bares abriam e funcionários de ONGs ocidentais chegavam aos milhares. O Afeganistão prometia oportunidades, salários sem impostos e animação.


Em 2005, virei editora do jornal quinzenal afegão Sada-e Azadi (A Voz da Liberdade) - publicação financiada pela International Security Assistance Force (Isaf), ligada à Otan. A premissa era simples: 16 páginas documentando o esforço de reconstrução, para encorajar apoio ao governo e seus patrocinadores militares. O trabalho era um meio para alcançar um fim - eu estava louca para me mudar para lá desde que fora enviada por um jornal britânico para cobrir a Guerra do Terror. O país é de tirar o fôlego de tão bonito e seu povo, orgulhoso, impetuoso e valente.


Eu sabia dos desafios que poderia enfrentar sendo uma ocidental em um país islâmico precariamente equilibrado entre a recuperação e a recaída. Tive o cuidado de respeitar os costumes e aprendi o idioma. Mas a maioria dos afegãos não era hostil com ocidentais. Quando os homens me olhavam, era por curiosidade, e não male-violência. Nunca me fizeram sentir indesejável ou vulnerável, e é por isso que recusei a hospedagem gratuita oferecida atrás dos muros com arame farpado da Isaf. Planejava passar ao menos dois anos no Afeganistão. E dividir um contêiner com outra expatriada não me pareceu ideal. Então contratei um motorista e um cozinheiro e aluguei uma casa em Wazir Akbar Khan, um subúrbio relativamente luxuoso que abrigava embaixadas, ONGs e bons restaurantes.


Quando me mudei, a primavera havia chegado, e eu estava mais feliz que nunca. Tinha um cachorro, Blister, uma casa de dois andares em frente a um restaurante tailândes, um empregado para cozinhar, um emprego decente e um celular que tocava o tempo todo com fofocas e convites. Cabul me deu uma vida com a qual nunca havia sonhado. O que não quer dizer que não tivesse suas dificuldades. A eletricidade era uma visita rara que aparecia durante cinco horas por noite a cada 48 horas, e o barulho de geradores era uma constante. Estando a 1.800 metros acima do nível do mar, os invernos eram exepcionalmente severos, chegando a -20ºC ao ar livre e -15ºC dentro de casa. Canos congelavam, descargas pifavam e o aquecimento era um perigo. Certa noite meu aquecedor a diesel explodiu, assutando os vizinhos, que acreditavam ter ouvido um ataque Talibã.


Quando a neve derretia, tudo mudava. No centro, a Chicken Street se agitava com os ocidentais negociando tapetes persas, lenços, chapéus pakoul e armas antigas. Nas minhas folgas, encontrava minhas melhores amigas - Frauke, 39, holandesa que trabalhava em uma ONG, e Rachel, 35, produtora da BBC. Almoçávamos no Le Bistro antes de passear pelas lojas para procurar lenços, túnicas e cosméticos, o tempo todo seguidas por crianças oferencendo serviços de carregadores de sacolas. Mas era quando o sol se punha e a chamada para a oração se extiguia que a cidade ficava mágica. Lojas enfeitadas com lâmpadas brilhantes conferiam às noites um ar festivo, o aroma do carvão em brasa das barracas de kebab viajava pelas ruas e Land Cruisers enchiam as avenidas, levando pessoas aos bares. À noite, trocávamos nossos lenços por decotes, colocávamos batom e íamos para nosso lugares favorito, o L'Atmosphère, o Gandamack e o La Cantina (o Afeganistão é um país islâmico, mas a proibição de bebidas alcoólicas se aplica somente a muçulmanos). Os principais assuntos entre mulheres eram cabelo, depilação e homens. A vida era normal. Mesmo em Cabul.


Um dia típico começava às 7h, quando era acordada com café por meu cozinheiro, Mohammad Sharif. Às 7h45, pulava no Toyota Corolla guiado habilmente por meu motorista, Sharabdin, pelos terríveis congestionamentos. Às 8h chegava à sede da Isaf e participava da "conferência" - uma reunião diária para emitir ordens e recontar incidentes hostis. Em seguida, começavam os trabalhos no jornal, mas como a publicação inteira podia ser escrita em dois dias, o tempo era geralmente gasto discutindo lugares para almoçar, indo tomas um café e planejando maneiras de deixar o escritório cedo.


Em maio de 2006, o governo afegãoassinou um toque de recolher após uma colisão fatal no norte de Cabul envolvendo um caminhão militar dos EUA. Na época, em vez de ter medo, a comunidadeficou irritada pelo horário limite de 22h para sair à rua. Felizmente, a novidade não durou, e depois de uma semana a piscina do L'Atmosphère estava de novo cheia de mulheres de biquíni. Não se tratava de bravata, os veteranos de Cabul realmente acreditavam que tinham pouco a temer. Todos admitiam que havia um risco, mas a maioria dos crimes cometidos contra a comunidade estrangeira era oportunista, não planejada, e então o sentimentogeral era que a vítima estava no "lugar errado na hora errada". Não importava o que acontecesse, as festas nunca paravam.


E então, no outono de 2006, algo para o qual estava totalmente despreparada aconteceu: me apaixonei. Lorenz era capitão do exército austríaco e fora transferido para a seção humanitária da Isaf. Ainda que admitisse que ele era bonito, era um soldado e, portanto, pouco interessante para mim. Até que numa noite passei no L'Atmosphère e o encontrei tomando cerveja em roupas civis...


Pela primeira vez no Afeganistão, vivi não como uma solteira - me esquivando de perguntas curiosas sobre quando planejava ter filhos -, mas como um casal. Apesar da ameaça de demissão, Lorenz escapava do acampamento da Isaf todas as noites e dormia na minha casa. Mohammad Sharif ficou horrorizado inicialmente, mas logo gostou de Lorenz. Enquanto Lorenz estava em Cabul, vi a cidade com novos olhos. Alugamos uma Land Cruiser e dirigíamos pela trilha turística visitando a estrutura bombardeada do Palácio Darul Aman, o espetacular Jardim de Babur, e a livraria Shah M (de O Livreiro de Cabul).


Quando chegou a hora de Lorenz partir, sabia que minha temporada em Cabul também chegava ao fim. em janeiro de 2008 pedi demissão e comecei a triste tarefa de dizer adeus. Naquele mesmo mês, o Serena Hotel, supostamente à prova de bombas, foi atacado. Seis pessoas morreram e outras seis ficaram feridas, e o incidente caiu como uma granada no colo da comunidade de expatriados. Embaixadas impuseram toque de recolher imediato, e Cabul se tornou uma cidade-fantasma. Sair agora parecia uma traição. Enquanto dividia meu móveis entre Mohammad Sharif e Sharabdin, me enchia de tristeza. O Afeganistão havia sido generoso comigo: fui para lá solteira e curiosa, e parti dois anos e meio depois mais sábia, com um cachorro e um namorado. Um dia irei voltar - talvez com os filhos que meus amigos afegãos tanto desejaram para mim. Inshallah."


( Artigo para a revista Vogue - Abril/2009 )

1 comentários:

Eduardo Salvalaio disse...

Gostei. Gosto de variedades num blog, passando por arte em geral, curiosidades, humor, artigos de revista (como esse que vc colocou). Não é a toa que meu fotolog é aquela miscelânea toda tb.

Agora, uma coisa é certa. Engraçado como temos uma consciência/visão de um país/lugar através da mídia e outra do que ouvimos falar, do que presenciamos, ou do que um conhecido nosso viveu. E vejo tanta gente endeusando países como os EUA (que geralmente esconde seus podres da mídia) e se esquecendo de olhar para lugares como o Afeganistão. Muitos nem conhecem e já dizem: 'Deus me livre de morar aí...'.

E o Oriente é sempre castigado neste ponto. Muitas pessoas até dão risadas da cultura dessa parte do mundo. E ficam dizendo que o modo de vida, o padrão ideal é o adotado pelo Ocidente. Poupem-me.

E venha com mais textos assim...
Para sabermos mais o que é a vida em outro país além do que Redes Gl(b)obos da vida apresentam ao povo.

P.S. - Pode ser subversivo aqui?
Agora já era.
:)
Abraços.

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